Como avaliar a perda óssea da glenoide e o “Glenoid Track” na instabilidade do ombro
Introdução
A instabilidade anterior recorrente do ombro é uma condição que pode afetar significativamente a qualidade de vida dos pacientes. A decisão sobre o tipo de tratamento cirúrgico mais adequado tem evoluído ao longo dos anos, especialmente com o avanço nas técnicas de imagem e compreensão das lesões associadas. A escolha entre procedimentos cirúrgicos anatômicos, como a reparação de Bankart, ou não anatômicos, como o Remplissage e a cirurgia de Latarjet, depende de vários fatores clínicos e radiológicos. Entre esses fatores, a presença e o grau de perda óssea na glenoide (cavidade articular da escápula) ou na cabeça do úmero têm papel predominante, pois influenciam diretamente o risco de falha do reparo artroscópico de Bankart.
O Conceito de Glenoid Track
O conceito de Glenoid Track ou Trilha da Glenoide foi introduzido por Yamamoto et al. e refere-se a uma área específica na cabeça do úmero que permanece em contato com a glenoide durante movimentos de abdução e rotação externa do ombro. Essencialmente, o glenoid track é a porção da cabeça umeral que articula com a glenoide em posições críticas de movimento. Este conceito permite uma avaliação conjunta das lesões ósseas da glenoide e do úmero, proporcionando uma melhor compreensão da instabilidade do ombro e auxiliando na decisão terapêutica.
Posteriormente, Di Giacomo et al. desenvolveram um método de cálculo do glenoid track utilizando tomografia computadorizada tridimensional (TC 3D), categorizando as lesões combinadas em "on-track" (dentro da trilha) ou "off-track" (fora da trilha). Essa categorização é fundamental para prever quais lesões têm maior risco de engajamento (engagement), ou seja, quando a lesão de Hill-Sachs (defeito na cabeça do úmero) engata com a borda anterior da glenoide, aumentando o risco de recorrência da luxação após reparo artroscópico isolado de Bankart.
Como Avaliar o Glenoid Track em Imagens de Ressonância ou Tomografia
A avaliação do glenoid track pode ser realizada tanto por ressonância magnética (RM) quanto por tomografia computadorizada (TC), embora a TC seja tradicionalmente utilizada devido à melhor definição óssea. O processo envolve os seguintes passos:
Medição do Diâmetro da Glenoide: Calcula-se o diâmetro anteroposterior da glenoide saudável. Pode ser utilizando a glenoide contralateral como referência ou o método do "best circle", em que um círculo é desenhado margeando a borda posteroinferior da glenoide.
Cálculo da Trilha da Glenoide (Glenoid Track): A trilha da glenoide é definida como 83% do diâmetro da glenoide intacta. Este valor representa a área de contato normal entre a glenoide e a cabeça do úmero durante os movimentos.
Avaliação da Lesão de Hill-Sachs: Mede-se a extensão medial da lesão de Hill-Sachs na cabeça do úmero.
Determinação On-Track vs. Off-Track: Compara-se a extensão da lesão de Hill-Sachs com a trilha da glenoide. Se a lesão estiver dentro da trilha (on-track), é menos provável que haja engajamento patológico. Se a lesão ultrapassar a trilha (off-track), o risco de engajamento e, consequentemente, de instabilidade recorrente, é maior.
Imagem de ressonância magnética com as medidas das lesões ósseas.
d: lesão anterior da glenoide
D: diâmetro da glenoide normal
I-HS: intervalo de Hill-Sachs
Exemplo Prático
On-Track: A lesão de Hill-Sachs está contida dentro da área da trilha da glenoide. A articulação entre a glenoide e a cabeça do úmero permanece estável durante os movimentos.
Off-Track: A lesão de Hill-Sachs estende-se além da trilha da glenoide. Há risco de que a lesão "engate" na borda anterior da glenoide, levando a episódios recorrentes de luxação.
Vantagens do Conceito de Glenoid Track
Avaliação Combinada: Permite a análise conjunta das perdas ósseas da glenoide e da cabeça do úmero, oferecendo uma visão mais completa da instabilidade do ombro.
Orientação Terapêutica: A categorização das lesões em on-track ou off-track auxilia na decisão sobre o tipo de tratamento cirúrgico mais adequado. Por exemplo:
- Lesões on-track podem ser tratadas com reparo artroscópico de Bankart isolado.
- Lesões off-track podem necessitar de procedimentos adicionais, como o Remplissage ou a cirurgia de Latarjet, para evitar a recorrência da instabilidade.
Previsão de Risco de Recorrência: Ajuda a identificar pacientes com maior risco de falha após reparo artroscópico isolado, permitindo intervenções mais assertivas.
Desvantagens e Limitações do Conceito de Glenoid Track
Avaliação Categórica: A classificação binária em on-track ou off-track pode ser limitada em casos limítrofes. Lesões próximas ao limiar podem não ser adequadamente categorizadas, o que pode influenciar a decisão terapêutica. Uma avaliação quantitativa adicional, considerando o "intervalo de Hill-Sachs" e o valor absoluto do glenoid track, pode ser benéfica nesses casos.
Reprodutibilidade: Estudos têm demonstrado variações significativas nas medidas entre diferentes examinadores, especialmente na determinação da extensão da lesão de Hill-Sachs e na localização precisa das referências anatômicas (como a inserção do tendão infraespinhal). Isso pode levar a inconsistências na categorização das lesões.
Complexidade Técnica: A avaliação precisa requer experiência e compreensão detalhada da anatomia e das técnicas de imagem. Pode ser desafiador em ambientes com recursos limitados ou onde a qualidade das imagens não é ideal.
Considerações Finais
O conceito de glenoid track representa um avanço significativo na compreensão e manejo da instabilidade anterior do ombro. Ao permitir uma avaliação integrada das perdas ósseas glenoidais e umerais, oferece aos cirurgiões uma ferramenta valiosa para orientar a escolha do tratamento mais adequado para cada paciente.
No entanto, é importante reconhecer suas limitações. A categorização simples em on-track ou off-track pode não capturar toda a complexidade das lesões, especialmente em casos limítrofes. Além disso, a variabilidade nas medidas entre diferentes observadores destaca a necessidade de padronização e treinamento adequado.
Por fim, a decisão terapêutica deve ser individualizada, levando em consideração não apenas os achados de imagem, mas também fatores clínicos, como a idade do paciente, nível de atividade física, esportes praticados e histórico de lesões prévias.
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