Instabilidade (luxação) posterior do ombro
O que é a instabilidade posterior do ombro e como ela ocorre?
A instabilidade posterior do ombro é uma condição relativamente incomum, representando cerca de 2% a 10% de todos os casos de instabilidade do ombro. Embora menos comum do que a instabilidade anterior (luxação anterior do ombro), ela tem sido mais estudada recentemente, especialmente devido ao aumento da prática de esportes de alta performance.
Essa condição pode ter diferentes causas, apresentações e lesões anatômicas, como traumas ou degeneração do lábio posterior e dos ligamentos.
Luxação Posterior Traumática
A forma mais evidente de instabilidade posterior ocorre após um trauma, quando o ombro sai do lugar para trás, resultando em uma luxação posterior. Esse tipo de luxação é geralmente provocado por acidentes, como colisões automobilísticas ou quedas, ou após crises convulsivas, onde o braço está em adução e rotação interna.
Instabilidade Posterior Não Traumática (instabilidade oculta)
A instabilidade posterior também pode ocorrer sem um trauma evidente. Isso pode estar relacionado a lesões degenerativas ou lesões do lábio glenoidal e dos ligamentos ao longo do tempo, devido a movimentos repetitivos, como ocorre em esportes ou atividades que envolvem movimentos de adução e rotação interna do ombro.
Essa condição também é chamada de ombro instável doloroso ou instabilidade posterior oculta.
Essa situação é comum entre praticantes de musculação, especialmente em exercícios com carga elevada, como o supino reto. Durante o movimento do supino, a posição dos ombros e a ação de empurrar o peso para cima criam uma força significativa que tende a deslocar a cabeça do úmero para trás (posteriormente). Essa pressão repetida pode sobrecarregar os ligamentos e o lábio posterior da glenoide, levando a microlesões ou alongamento dos tecidos estabilizadores do ombro. Com o tempo, essa sobrecarga pode resultar em instabilidade posterior não traumática, particularmente se a técnica incorreta ou cargas excessivas forem utilizadas sem o devido fortalecimento dos músculos estabilizadores, como o manguito rotador e a musculatura da escápula.
Predisposição Anatômica: Retroversão da Glenoide
Além disso, algumas pessoas podem ter uma predisposição anatômica que aumenta o risco de instabilidade posterior. Uma dessas condições é a retroversão da glenoide, que ocorre quando a cavidade onde a cabeça do úmero se articula está inclinada para trás mais do que o normal. A glenoide é uma parte da escápula (ou omoplata) que forma a "cavidade" do ombro.
Quando há uma retroversão excessiva, significa que a cavidade glenoidal está "virada" mais para trás, o que pode reduzir a estabilidade do ombro, especialmente em movimentos repetitivos ou sob alta carga, como no levantamento de pesos ou atividades esportivas. Com essa alteração anatômica, a cabeça do úmero pode se deslocar para trás com mais facilidade, aumentando o risco de instabilidade posterior. Isso pode ocorrer mesmo em pessoas que nunca sofreram um trauma direto no ombro, simplesmente por causa dessa característica anatômica.
É importante que pacientes com retroversão excessiva da glenoide tenham um acompanhamento cuidadoso, especialmente se praticam atividades com alta carga ou intensidade, para evitar o desenvolvimento de instabilidade e de artrose no futuro.
Frouxidão Ligamentar e instabilidade multidirecional
A instabilidade multidirecional ocorre quando o ombro é instável em mais de uma direção, podendo envolver frouxidão ligamentar tanto na parte anterior, inferior, quanto posterior da articulação. Essa condição é comum em pessoas com frouxidão ligamentar, ou seja, aquelas com ligamentos mais elásticos ou "frouxos", o que permite um movimento excessivo da articulação. Pacientes com hipermobilidade articular, como os que podem "dobrar" as articulações de maneira anormal, estão mais predispostos a essa condição. Na instabilidade posterior, essa frouxidão permite que a cabeça do úmero deslize para trás com mais facilidade, resultando em dor, sensação de ombro solto, e episódios de subluxação ou luxação.
Tipos de Lesão na Instabilidade Posterior do Ombro
Os principais tipos de lesões associadas à instabilidade posterior incluem:
- Lesão do lábio posterior (lesão de Bankart reversa)
- Lesão óssea do úmero (Lesão de Hill-Sachs reversa)
- Lesões na glenoide (erosão posterior)
O lábio posterior da glenoide, responsável pela estabilização do ombro, pode sofrer desinserção do osso, sendo uma das lesões mais comuns em casos de instabilidade.
Lesões ósseas, como a lesão de Hill-Sachs reversa, também podem ocorrer, particularmente em luxações traumáticas, resultando em um afundamento da cabeça do úmero.
Sintomas e Diagnóstico da Instabilidade Posterior do Ombro
Os principais sintomas incluem dor ao realizar certos movimentos, além de episódios de subluxação (quando o osso sai do lugar e volta sozinho) ou luxação completa.
Em geral, a luxação posterior causa menos dor que a luxação anterior, mas pode ser facilmente subdiagnosticada, levando a complicações como luxação inveterada (quando o ombro permanece fora do lugar por muito tempo) ou artrose (quando a cartilagem sofre desgastes progressivos).
Exames de imagem, como radiografias e ressonância magnética (RM), são fundamentais para confirmar o diagnóstico. A ressonância magnética é particularmente útil para avaliar lesões do lábio, ligamentos e cartilagem.
Tratamento da Instabilidade Posterior do Ombro
Tratamento Conservador
O tratamento conservador, que envolve o fortalecimento do manguito rotador e da musculatura da escápula, é geralmente a primeira linha de tratamento para a instabilidade posterior. A fisioterapia é importante para melhorar a estabilidade do ombro.
Quais exercícios evitar
Alguns exercícios de musculação colocam o ombro em risco devido à biomecânica envolvida. O supino reto, por exemplo, é um exercício que envolve uma força significativa de empurrar, o que pode deslocar a cabeça do úmero para trás (posteriormente), principalmente se feito com alta carga ou técnica inadequada. Esse movimento gera uma pressão na articulação, aumentando a chance de agravar a instabilidade posterior.
Outro exercício que pode piorar essa condição é o crucifixo invertido, que envolve uma combinação de adução e rotação interna do ombro. Essas posições colocam ainda mais tensão no lábio glenoidal e nos ligamentos posteriores, podendo causar microtraumas ou aumentar a frouxidão ligamentar, resultando em maior instabilidade.
Durante o tratamento conservador, é essencial evitar esses movimentos para não agravar a lesão e garantir que a recuperação ocorra de forma adequada.
Tratamento Cirúrgico
Nos casos onde o tratamento conservador falha, pode ser indicada a cirurgia. Procedimentos comuns incluem o reparo do lábio glenoidal e o tensionamento dos ligamentos, que podem ser feitos por artroscopia.
A artroscopia é uma técnica cirúrgica minimamente invasiva em que pequenas câmeras e instrumentos são inseridos no ombro por pequenas incisões. Isso permite que o cirurgião visualize diretamente o interior da articulação e trate as lesões sem a necessidade de grandes cortes. Durante a artroscopia, o cirurgião pode:
- Reparar o lábio glenoidal: Quando o lábio posterior da glenoide está desinserido ou danificado, ele pode ser suturado de volta ao osso usando pequenas âncoras, que permitem que a lesão cicatrize em sua posição correta.
- Tensionar os ligamentos: Se os ligamentos ao redor do ombro estiverem frouxos ou alongados, eles podem ser tensionados e reparados para aumentar a estabilidade da articulação. Esse procedimento ajuda a evitar que a cabeça do úmero se mova para trás de forma anormal, prevenindo novas instabilidades.
A vantagem da artroscopia é que ela é menos invasiva do que a cirurgia aberta, resultando em menos dor pós-operatória, cicatrizes menores e uma recuperação mais rápida. No entanto, a recuperação completa ainda requer fisioterapia intensiva para restaurar a mobilidade e a força do ombro.
Para lesões ósseas mais graves, como a lesão de Hill-Sachs reversa (onde há um afundamento na parte frontal da cabeça do úmero), procedimentos adicionais podem ser necessários, como a transferência do tendão subescapular para preencher o defeito ou o uso de um enxerto ósseo. Esses procedimentos visam restaurar a integridade do osso e prevenir que o ombro continue instável.
Procedimentos para Lesões Ósseas: Hill-Sachs Reverso e Lesões da Glenoide
Para pacientes que sofreram luxações traumáticas mais graves, podem ocorrer lesões ósseas na cabeça do úmero (lesão de Hill-Sachs reversa) ou na glenoide (erosão ou fratura). Essas lesões ósseas comprometem a estabilidade do ombro e, muitas vezes, necessitam de procedimentos cirúrgicos adicionais para repará-las.
Lesão de Hill-Sachs Reversa
A lesão de Hill-Sachs reversa ocorre quando a cabeça do úmero, após ser deslocada para trás, sofre um afundamento ósseo na sua parte frontal. Esse defeito pode impedir que o ombro permaneça estável após ser reposicionado, aumentando o risco de novas luxações.
O tratamento cirúrgico para essa lesão pode incluir o preenchimento do defeito ósseo. Há várias técnicas que podem ser usadas, incluindo:
- Procedimento de McLaughlin: Essa técnica consiste em transferir o tendão subescapular para o defeito ósseo na cabeça do úmero, preenchendo a área lesionada e impedindo novas luxações. Realizada por via aberta tradicional
- Procedimento de Remplissage reverso: É uma técnica semelhante à descrita acima, mas realizada por artroscopia e sem desinserir (soltar) o tendão do subescapular. O Remplissage Reverso é uma alternativa minimamente invasiva aos métodos abertos, permitindo ao cirurgião reparar o defeito por artroscopia sem necessidade de enxertos ósseos ou procedimentos mais invasivos.
- Enxerto Ósseo Autólogo ou Alogênico: Em alguns casos, o defeito ósseo pode ser tratado com enxertos ósseos, que podem ser retirados do próprio paciente (autólogos) ou de um banco de tecidos (alogênicos). Esses enxertos preenchem a área lesionada, restaurando a integridade da articulação.
Lesões da Glenoide
Lesões na glenoide, como fraturas ou erosão óssea significativa, podem ocorrer em luxações traumáticas ou após episódios repetidos de instabilidade. Quando a lesão é grave, um enxerto ósseo pode ser necessário para restaurar a superfície articular e impedir novas luxações.
- Transferência de Bloco Ósseo Posterior: Um dos procedimentos usados para reparar a glenoide é a transferência de bloco ósseo, onde um enxerto ósseo é posicionado na parte posterior da glenoide para aumentar sua superfície e melhorar a estabilidade da articulação.
- Osteotomia de Abertura Posterior: Nos casos em que há retroversão excessiva da glenoide (quando a glenoide está inclinada para trás de forma anormal), pode ser realizada uma osteotomia (corte cirúrgico do osso) para corrigir essa deformidade. O objetivo desse procedimento é restaurar a orientação normal da glenoide, melhorando a estabilidade.
Considerações Pós-Operatórias
Após a cirurgia, os pacientes geralmente passam por três fases de reabilitação:
- Imobilização com Tipoia (primeiras 4 a 6 semanas): Durante essa fase, o ombro é imobilizado com uma tipoia em rotação externa, o que ajuda a manter a articulação em uma posição mais estável enquanto os tecidos cicatrizam. A imobilização visa proteger o reparo cirúrgico, reduzindo o risco de nova luxação durante a recuperação inicial. Essa tipoia mantém o braço ligeiramente afastado do corpo, prevenindo rotação interna excessiva, que poderia comprometer a cicatrização dos ligamentos e lábio.
- Recuperação de movimento (6 a 12 semanas): Após a remoção da tipoia, inicia-se um programa de fisioterapia para restaurar a amplitude de movimento de forma controlada, evitando posições que possam forçar a articulação, como a rotação interna extrema.
- Fortalecimento muscular (após 3 meses): A última fase da reabilitação envolve o fortalecimento dos músculos do ombro, especialmente o manguito rotador e os músculos da escápula, que são fundamentais para manter a estabilidade a longo prazo. Dependendo da extensão da cirurgia e do tipo de lesão, o retorno completo às atividades físicas e esportivas pode levar até 6 a 9 meses.
Taxa de sucesso da cirurgia e riscos
Como em qualquer cirurgia, há riscos, incluindo infecção, rigidez articular, ou falha na cicatrização. No entanto, com técnicas modernas e reabilitação adequada, a maioria dos pacientes obtém excelentes resultados.
A cirurgia para instabilidade posterior do ombro apresenta taxas de sucesso variáveis, dependendo da gravidade da lesão e do tipo de procedimento realizado. Em estudos que avaliam o reparo artroscópico do lábio glenoidal, as taxas de sucesso variam de 81% a 91%, com a maioria dos pacientes relatando uma melhora significativa na estabilidade do ombro e na função articular após o procedimento. Esses resultados são particularmente favoráveis em pacientes que seguem corretamente o protocolo de reabilitação pós-operatória, que inclui fortalecimento muscular e recuperação de amplitude de movimento.
Entretanto, os casos que envolvem lesões ósseas mais graves, como as lesões de Hill-Sachs reversas, podem apresentar taxas de sucesso ligeiramente menores, dependendo do tipo de reparo realizado, como enxerto ósseo ou procedimentos como a técnica de Remplissage. Nesses casos, o retorno completo às atividades esportivas pode ser mais demorado, mas a maioria dos pacientes ainda obtém melhora funcional satisfatória.
Referências
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