Dr. Mauro Gracitelli

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Instabilidade (luxação) posterior do ombro

O que é a instabilidade posterior do ombro e como ela ocorre?

A instabilidade posterior do ombro é uma condição relativamente incomum, representando cerca de 2% a 10% de todos os casos de instabilidade do ombro. Embora menos comum do que a instabilidade anterior (luxação anterior do ombro), ela tem sido mais estudada recentemente, especialmente devido ao aumento da prática de esportes de alta performance.

Essa condição pode ter diferentes causas, apresentações e lesões anatômicas, como traumas ou degeneração do lábio posterior e dos ligamentos.

Luxação Posterior Traumática

A forma mais evidente de instabilidade posterior ocorre após um trauma, quando o ombro sai do lugar para trás, resultando em uma luxação posterior. Esse tipo de luxação é geralmente provocado por acidentes, como colisões automobilísticas ou quedas, ou após crises convulsivas, onde o braço está em adução e rotação interna.

Instabilidade Posterior Não Traumática (instabilidade oculta)

A instabilidade posterior também pode ocorrer sem um trauma evidente. Isso pode estar relacionado a lesões degenerativas ou lesões do lábio glenoidal e dos ligamentos ao longo do tempo, devido a movimentos repetitivos, como ocorre em esportes ou atividades que envolvem movimentos de adução e rotação interna do ombro.

Essa condição também é chamada de ombro instável doloroso ou instabilidade posterior oculta.

Essa situação é comum entre praticantes de musculação, especialmente em exercícios com carga elevada, como o supino reto. Durante o movimento do supino, a posição dos ombros e a ação de empurrar o peso para cima criam uma força significativa que tende a deslocar a cabeça do úmero para trás (posteriormente). Essa pressão repetida pode sobrecarregar os ligamentos e o lábio posterior da glenoide, levando a microlesões ou alongamento dos tecidos estabilizadores do ombro. Com o tempo, essa sobrecarga pode resultar em instabilidade posterior não traumática, particularmente se a técnica incorreta ou cargas excessivas forem utilizadas sem o devido fortalecimento dos músculos estabilizadores, como o manguito rotador e a musculatura da escápula.

Predisposição Anatômica: Retroversão da Glenoide

Além disso, algumas pessoas podem ter uma predisposição anatômica que aumenta o risco de instabilidade posterior. Uma dessas condições é a retroversão da glenoide, que ocorre quando a cavidade onde a cabeça do úmero se articula está inclinada para trás mais do que o normal. A glenoide é uma parte da escápula (ou omoplata) que forma a "cavidade" do ombro.

Quando há uma retroversão excessiva, significa que a cavidade glenoidal está "virada" mais para trás, o que pode reduzir a estabilidade do ombro, especialmente em movimentos repetitivos ou sob alta carga, como no levantamento de pesos ou atividades esportivas. Com essa alteração anatômica, a cabeça do úmero pode se deslocar para trás com mais facilidade, aumentando o risco de instabilidade posterior. Isso pode ocorrer mesmo em pessoas que nunca sofreram um trauma direto no ombro, simplesmente por causa dessa característica anatômica.

Exemplo da glenoide normal no lado esquerdo e com retroversão no lado direito

É importante que pacientes com retroversão excessiva da glenoide tenham um acompanhamento cuidadoso, especialmente se praticam atividades com alta carga ou intensidade, para evitar o desenvolvimento de instabilidade e de artrose no futuro.

Evolução de um paciente com displasia da glenoide. Imagem da esquerda com lesão labral e sem artrose. Imagem ao centro com artrose inicial e cabeça do úmero para posterior (para trás). Imagem da direita demonstrando evolução para artrose grave.

Frouxidão Ligamentar e instabilidade multidirecional

A instabilidade multidirecional ocorre quando o ombro é instável em mais de uma direção, podendo envolver frouxidão ligamentar tanto na parte anterior, inferior, quanto posterior da articulação. Essa condição é comum em pessoas com frouxidão ligamentar, ou seja, aquelas com ligamentos mais elásticos ou "frouxos", o que permite um movimento excessivo da articulação. Pacientes com hipermobilidade articular, como os que podem "dobrar" as articulações de maneira anormal, estão mais predispostos a essa condição. Na instabilidade posterior, essa frouxidão permite que a cabeça do úmero deslize para trás com mais facilidade, resultando em dor, sensação de ombro solto, e episódios de subluxação ou luxação.

Tipos de Lesão na Instabilidade Posterior do Ombro

Os principais tipos de lesões associadas à instabilidade posterior incluem:

  • Lesão do lábio posterior (lesão de Bankart reversa)
  • Lesão óssea do úmero (Lesão de Hill-Sachs reversa)
  • Lesões na glenoide (erosão posterior)

O lábio posterior da glenoide, responsável pela estabilização do ombro, pode sofrer desinserção do osso, sendo uma das lesões mais comuns em casos de instabilidade.

Lesões ósseas, como a lesão de Hill-Sachs reversa, também podem ocorrer, particularmente em luxações traumáticas, resultando em um afundamento da cabeça do úmero.

Sintomas e Diagnóstico da Instabilidade Posterior do Ombro

Os principais sintomas incluem dor ao realizar certos movimentos, além de episódios de subluxação (quando o osso sai do lugar e volta sozinho) ou luxação completa.

Em geral, a luxação posterior causa menos dor que a luxação anterior, mas pode ser facilmente subdiagnosticada, levando a complicações como luxação inveterada (quando o ombro permanece fora do lugar por muito tempo) ou artrose (quando a cartilagem sofre desgastes progressivos).

Exames de imagem, como radiografias e ressonância magnética (RM), são fundamentais para confirmar o diagnóstico. A ressonância magnética é particularmente útil para avaliar lesões do lábio, ligamentos e cartilagem.

Tratamento da Instabilidade Posterior do Ombro

Tratamento Conservador

O tratamento conservador, que envolve o fortalecimento do manguito rotador e da musculatura da escápula, é geralmente a primeira linha de tratamento para a instabilidade posterior. A fisioterapia é importante para melhorar a estabilidade do ombro.

Quais exercícios evitar

Alguns exercícios de musculação colocam o ombro em risco devido à biomecânica envolvida. O supino reto, por exemplo, é um exercício que envolve uma força significativa de empurrar, o que pode deslocar a cabeça do úmero para trás (posteriormente), principalmente se feito com alta carga ou técnica inadequada. Esse movimento gera uma pressão na articulação, aumentando a chance de agravar a instabilidade posterior.

Outro exercício que pode piorar essa condição é o crucifixo invertido, que envolve uma combinação de adução e rotação interna do ombro. Essas posições colocam ainda mais tensão no lábio glenoidal e nos ligamentos posteriores, podendo causar microtraumas ou aumentar a frouxidão ligamentar, resultando em maior instabilidade.

Durante o tratamento conservador, é essencial evitar esses movimentos para não agravar a lesão e garantir que a recuperação ocorra de forma adequada.

Tratamento Cirúrgico

Nos casos onde o tratamento conservador falha, pode ser indicada a cirurgia. Procedimentos comuns incluem o reparo do lábio glenoidal e o tensionamento dos ligamentos, que podem ser feitos por artroscopia.

A artroscopia é uma técnica cirúrgica minimamente invasiva em que pequenas câmeras e instrumentos são inseridos no ombro por pequenas incisões. Isso permite que o cirurgião visualize diretamente o interior da articulação e trate as lesões sem a necessidade de grandes cortes. Durante a artroscopia, o cirurgião pode:

  • Reparar o lábio glenoidal: Quando o lábio posterior da glenoide está desinserido ou danificado, ele pode ser suturado de volta ao osso usando pequenas âncoras, que permitem que a lesão cicatrize em sua posição correta.
  • Tensionar os ligamentos: Se os ligamentos ao redor do ombro estiverem frouxos ou alongados, eles podem ser tensionados e reparados para aumentar a estabilidade da articulação. Esse procedimento ajuda a evitar que a cabeça do úmero se mova para trás de forma anormal, prevenindo novas instabilidades.

A vantagem da artroscopia é que ela é menos invasiva do que a cirurgia aberta, resultando em menos dor pós-operatória, cicatrizes menores e uma recuperação mais rápida. No entanto, a recuperação completa ainda requer fisioterapia intensiva para restaurar a mobilidade e a força do ombro.

Para lesões ósseas mais graves, como a lesão de Hill-Sachs reversa (onde há um afundamento na parte frontal da cabeça do úmero), procedimentos adicionais podem ser necessários, como a transferência do tendão subescapular para preencher o defeito ou o uso de um enxerto ósseo. Esses procedimentos visam restaurar a integridade do osso e prevenir que o ombro continue instável.

Procedimentos para Lesões Ósseas: Hill-Sachs Reverso e Lesões da Glenoide

Para pacientes que sofreram luxações traumáticas mais graves, podem ocorrer lesões ósseas na cabeça do úmero (lesão de Hill-Sachs reversa) ou na glenoide (erosão ou fratura). Essas lesões ósseas comprometem a estabilidade do ombro e, muitas vezes, necessitam de procedimentos cirúrgicos adicionais para repará-las.

Lesão de Hill-Sachs Reversa

A lesão de Hill-Sachs reversa ocorre quando a cabeça do úmero, após ser deslocada para trás, sofre um afundamento ósseo na sua parte frontal. Esse defeito pode impedir que o ombro permaneça estável após ser reposicionado, aumentando o risco de novas luxações.

O tratamento cirúrgico para essa lesão pode incluir o preenchimento do defeito ósseo. Há várias técnicas que podem ser usadas, incluindo:

  • Procedimento de McLaughlin: Essa técnica consiste em transferir o tendão subescapular para o defeito ósseo na cabeça do úmero, preenchendo a área lesionada e impedindo novas luxações. Realizada por via aberta tradicional
  • Procedimento de Remplissage reverso: É uma técnica semelhante à descrita acima, mas realizada por artroscopia e sem desinserir (soltar) o tendão do subescapular. O Remplissage Reverso é uma alternativa minimamente invasiva aos métodos abertos, permitindo ao cirurgião reparar o defeito por artroscopia sem necessidade de enxertos ósseos ou procedimentos mais invasivos.
  • Enxerto Ósseo Autólogo ou Alogênico: Em alguns casos, o defeito ósseo pode ser tratado com enxertos ósseos, que podem ser retirados do próprio paciente (autólogos) ou de um banco de tecidos (alogênicos). Esses enxertos preenchem a área lesionada, restaurando a integridade da articulação.

Lesões da Glenoide

Lesões na glenoide, como fraturas ou erosão óssea significativa, podem ocorrer em luxações traumáticas ou após episódios repetidos de instabilidade. Quando a lesão é grave, um enxerto ósseo pode ser necessário para restaurar a superfície articular e impedir novas luxações.

  • Transferência de Bloco Ósseo Posterior: Um dos procedimentos usados para reparar a glenoide é a transferência de bloco ósseo, onde um enxerto ósseo é posicionado na parte posterior da glenoide para aumentar sua superfície e melhorar a estabilidade da articulação.
  • Osteotomia de Abertura Posterior: Nos casos em que há retroversão excessiva da glenoide (quando a glenoide está inclinada para trás de forma anormal), pode ser realizada uma osteotomia (corte cirúrgico do osso) para corrigir essa deformidade. O objetivo desse procedimento é restaurar a orientação normal da glenoide, melhorando a estabilidade.

Considerações Pós-Operatórias

Após a cirurgia, os pacientes geralmente passam por três fases de reabilitação:

  1. Imobilização com Tipoia (primeiras 4 a 6 semanas): Durante essa fase, o ombro é imobilizado com uma tipoia em rotação externa, o que ajuda a manter a articulação em uma posição mais estável enquanto os tecidos cicatrizam. A imobilização visa proteger o reparo cirúrgico, reduzindo o risco de nova luxação durante a recuperação inicial. Essa tipoia mantém o braço ligeiramente afastado do corpo, prevenindo rotação interna excessiva, que poderia comprometer a cicatrização dos ligamentos e lábio.
  2. Recuperação de movimento (6 a 12 semanas): Após a remoção da tipoia, inicia-se um programa de fisioterapia para restaurar a amplitude de movimento de forma controlada, evitando posições que possam forçar a articulação, como a rotação interna extrema.
  3. Fortalecimento muscular (após 3 meses): A última fase da reabilitação envolve o fortalecimento dos músculos do ombro, especialmente o manguito rotador e os músculos da escápula, que são fundamentais para manter a estabilidade a longo prazo. Dependendo da extensão da cirurgia e do tipo de lesão, o retorno completo às atividades físicas e esportivas pode levar até 6 a 9 meses.

Taxa de sucesso da cirurgia e riscos

Como em qualquer cirurgia, há riscos, incluindo infecção, rigidez articular, ou falha na cicatrização. No entanto, com técnicas modernas e reabilitação adequada, a maioria dos pacientes obtém excelentes resultados.

A cirurgia para instabilidade posterior do ombro apresenta taxas de sucesso variáveis, dependendo da gravidade da lesão e do tipo de procedimento realizado. Em estudos que avaliam o reparo artroscópico do lábio glenoidal, as taxas de sucesso variam de 81% a 91%, com a maioria dos pacientes relatando uma melhora significativa na estabilidade do ombro e na função articular após o procedimento. Esses resultados são particularmente favoráveis em pacientes que seguem corretamente o protocolo de reabilitação pós-operatória, que inclui fortalecimento muscular e recuperação de amplitude de movimento.

Entretanto, os casos que envolvem lesões ósseas mais graves, como as lesões de Hill-Sachs reversas, podem apresentar taxas de sucesso ligeiramente menores, dependendo do tipo de reparo realizado, como enxerto ósseo ou procedimentos como a técnica de Remplissage. Nesses casos, o retorno completo às atividades esportivas pode ser mais demorado, mas a maioria dos pacientes ainda obtém melhora funcional satisfatória.

Referências

Perguntas Frequentes

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